Permitam-me remontar ao que considero ser o próprio texto de fundação desse saber -às páginas iniciais de Tucídides, à sua Arqueologia. Aqui encontramos a delimitação primeira dessa cisão: "Os homens (comuns) aceitam e transmitem sem exame as tradições sobre os acontecimentos do passado" "2 "Mesmo os antigos produtores de memória, diz-nos ele, os poetas e logógrafos, preocuparam-se apenas em agradar a seu público, não se interessando pela verdade, pois ornavam seus relatos com o prestígio da fábula e o enriqueciam com fatos incomprováveis e inautênticos. Desde Tucídides, portanto, a história se funda, abre espaço para si, opondo-se às demais representações coletivas do passado. Definese como um saber crítico, ao mesmo tempo modesto, porque se contenta com aquilo que pode ser comprovado, mas também ambicioso, na medida em que visa relatar a verdade c que se crê capaz de produzi-la. O discurso historiográfico se apropriou, assim, desde há muito, das funções rememorativas das memórias sociais, de sua capacidade de selecionar e de eleger um passado, para exercê-las como um saber, um saber que tem uma relação privilegiada com a verdade.
Esta separação entre história e memória seguiu diferentes percursos no pensamento ocidental. Não pretendo percorrê-los aqui. O que importa é que, quando a história se tornou uma disciplina científica, no século passado, essa oposição foi um dos fundamentos de sua constituição como uma ciência pautada pela medida da verdade e capaz, como se julgava então, de apreender a verdade objetivamente. A fundação mesma da história como ciência carregava em si uma condenação da memória espontânea da sociedade, desautorizada como ideologia, como senso comum, como falsa consciência, cujas verdades seriam verdades impuras, contaminadas pelos interesses dos agentes sociais. E a oposição entre história científica e memória coletiva ergue-se, até hoje, como uma espécie dc mito de fundação, um mito que definiu um saber como científico, positivo e verdadeiro, e um não-saber, irracional, porque volúvel e interessado. Foi J. Le Goff quem o disse, recentemente: "Há duas histórias, a da memória coletiva e a dos historiadores. A primeira é, essencialmente, mítica, deformada, anacrônica. A tarefa da história científica é corrigir essa memória falseada, esclarecê-la e ajudá-la a retificar seus erros" 3